sábado, 29 de novembro de 2008

Entre aspas literárias #3

[…]
Já estavam separados antes do acidente. Quinze anos e dois filhos. A páginas tantas, ela agarrou nos miúdos e foi para casa dele. Para o ajudar na recuperação. Também não podia ser o contrário, ela não tinha casa, vivia na casa da mãe.

Ela dormia no escritório, ele no quarto que já fora de ambos, os miúdos nos respectivos. As rotinas eram as de sempre: cada um ia à sua vida. Menos ele, que ficava a remoer. O acidente custou-lhe a perna esquerda e várias lesões na coluna e muitas dores. Avulsas. O olho esquerdo ficou com a capacidade reduzida a 20 por cento, mas o pior foi a cabeça: tornou-se neurasténico, amargo e amigo da garrafa.

Observava-a nas rotinas. Ela tinha agora 40 anos e arranjava-se muito mais do que quando estavam casados. Calças discretamente justas, cabelo apanhado e era capaz de jurar que usava maquilhagem. Um leve tom. Os diálogos eram mínimos, muita secura a recordar o tempo da separação. Ele via-a assim e imaginava o que lia nas revistas. A nova vida das mulheres divorciadas, homens mais carinhosos e interessantes e essas merdas todas. E bebia.

Ela usava o roupeiro do antigo quarto comum, do quarto onde ele vegetava. Por duas vezes, fingindo-se adormecido, observou. Viu-a entrar vinda do banho, só com a toalha enrolada no corpo; viu-a escolher as cuequinhas: novas, brancas e com um debruado elegante. Viu-a calçar uns sapatos e vestir uma roupa que não conhecia, como quando iam jantar fora. Nos bons tempos. Nesse dia ela estava menos apressada.

Irritava-o de morte ainda ter vontade de a comer. Enquanto estiveram casados nunca lhe interessou outra mulher. Depois do acidente ficou convencido de que ela já não o queria. Os homens são assim, presos ao corpo. Arranjou-lhe casos, desconfiava e ela fartou-se; ou talvez tivesse tido mesmo um caso. Nunca chegou a saber. Ficou sozinho a remoer as maleitas. Estava-se nas tintas.

Ela estava pronta e devia ter saído do quarto. Não saiu. Ele abriu mais o olho bom e viu-a fazer algo completamente inesperado: abrir a blusa e sorrir, um sorriso meio envergonhado e provocante. Outras zonas adiantaram-se ao cérebro e tomaram a dianteira. Sentou-se na cama, sentou-a ao seu colo e tirou-lhe a blusa. Ela tirou o soutien, enrolou-o no pescoço dele e beijou-o. Muito, muito devagar. Ele sentiu a língua dela, imigrante e desesperada, e ficou doido. Estava indefeso, como ficava sempre que ela respirava vontade de foder. Noutros tempos.

Ela deitou-se de bruços, levantou a saia e ronronou. Sinal para a cavalaria.

Saboreou-a lentamente, surpreendido com o seu autocontrolo. Não se estraga com voragem um met especial. Percorreu-lhe com os dedos o cabelo, as costas e as nádegas, com suavidade tensa. Depois entrou, pedindo licença, e julgou que tinha o controlo. Não tinha.

Enquanto ia e vinha não conseguia abstrair-se totalmente. Ela estava apetitosíssima, mil por cento descontraída, mas ele pressentia um fio de estranheza. Se as coisas eram assim, por que estavam separados? Se ela se oferecia assim, por que raio o tratava como uma criança birrenta?

Nestas coisas há prioridades. A amígdala, uma pequena ilha cerebral, comanda as tropas e as cautelas vão-se. Morra gato, morra farto.

O fim veio certo como todos os fins. Rolou para o lado e examinou-lhe o cabelo, basto e negro. Estava mais bonita. Continuava de bruços e olhou para ele de soslaio e sorriu. Devia haver um código de bandeiras, como no mar alto, para o sorriso das mulheres.

“Nunca pensei que estivesses a precisar disto”, disse ele com a graça de uma toupeira. Ela voltou a sorrir e respondeu: “Não precisava. Vê lá se te portas melhor agora.” E levantou-se e saiu do quarto e foi a última vez que estiveram juntos.




Uma cena de sexo, Filipe Nunes Vicente, in Ler, Dezembro 2008

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