domingo, 30 de dezembro de 2007

Ode ao Incógnito

Isto de alertar o passado e pô-lo a dormir tem muito que se lhe diga. O que é suposto fazer agora com ele? É que está com uma birra tremenda e quer tudo menos voltar a dormir um soninho que era tranquilo, profundo, (confortável?)... Não há outro remédio senão embalá-lo um bocadinho, cantar-lhe uma canção baixinho, ao ouvido e esperar que se atordoe novamente para seguir as minhas tarefas de menina crescida. Só não percebi ainda se este dormitar é de noite longa ou uma mera sesta de fim de tarde, enquanto pendo a cabeça a meio do filme.

Iamos tão bem a navegar nas águas calmas do previsto quotidiano...

"Estás muito bonita [lembras-me os dias de sol, sal e pele dourada em que te amava mais que a lua]", "não me olhes assim [não vês que não tarda me lanço ao teu pescoço à procura do meu colo?]", "que tens feito? [estás sozinha? Passas noites em claro a amar alguém que não eu? Quem te oferece as flores e te prepara o croissant com creme?]", "o filme foi bom? [espero bem que não te tenhas divertido, que a companhia seja entediante e do teu fundo surja a mais melancólica saudade dos nossos dias de passeio, riso e disparate que revigoravam a alma]."

Os meus maiores segredos, fraquezas e brilhos velados enterrei-os na tua pele e o problema é que o teu beijo ainda me sabe à surpresa doce que pedia à mãe que trouxesse, quando regressava a casa ao final do dia. Nos espaços vazios formam-se silêncios intensos que dizem tudo e que apressadamente atafulhamos com palavras, como se tapássemos um buraco de onde já sai um fio de água de uma corrente forte, viva. Palavras carnais que expelimos das bocas antes que nos saiam aquelas que já não podemos dizer e que fariam com que tudo voltasse a ter sentido. Há calores maiores que o sol. Há sinais mais fundos que os da pele. E há marcas que ficam para além daquilo que se vê. Impressões no corpo, na alma, no fundo do âmago, da acidez do mergulho. Mas agora não, para além deste limite já não se pode, senão ainda nos cai a Autoridade dos Amores em cima, a sentença é prisão perpétua e nem um pagamento de caução nos salva.

Sim, e se te disser que te amo perdidamente e continuo a querer saber se tiveste frio durante a noite, enquanto falamos pacatamente sobre o bife da Portugália? E se te disser que "muito para mim é tão pouco e pouco eu não quero mais", terás a capacidade de o dar? Terás a coragem de o dar?

Irrita-me o constante possível ignorar do óbvio. Irrita-me a tua postura de familiar afastado que me visita sempre de mala à porta, caloroso, mas inquieto. Irrita-me o fumo do teu cigarro que se me entranhou. Irrita-me a mera possibilidade das talas nos olhos que desviam a atenção dos animais. Irrita-me aquilo que és e que me fascina na doçura do teu olhar, na devassidão dos gestos, no prazer de dar, na sinceridade dos gostos, na genuinidade dos princípios, no soprar do café antes de mo dares a beber. Irrita-me que não tenhamos bebido o melhor de nós todos os dias e que as circunstâncias nos tenham feito duvidar daquilo que persiste e desperta de cada vez que nos encontramos. Mas orgulho-me da mulher que surgiu e das certezas daquilo que quer e não quer. Porque nos reconhecemos no fascínio, na plenitude daquilo que somos e nos encaixa, porque não regressámos, porque nunca nos fomos.

Porque temos medo.

- Estás a ouvir? Acordou... Vais lá aconchegá-lo e adormecê-lo?
- Não, vou trazê-lo para junto de nós e vamos passear.

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