terça-feira, 28 de julho de 2009

Leituras aleatórias

"Estavam ali diante dos meus olhos, e era terrível e ao mesmo tempo fascinante.
Ao princípio pensei que ele a estava a matar, logo a seguir percebi que não, que talvez ambos estivessem a morrer, só depois qualquer apelo misterioso e distante se fez carne em mim. Então todo eu fiquei amarrado aos seus gestos, àquela respiração fatigada e difícil, àquele balbucio que lhes saía ralo da boca.
Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto era aquele corpo todo de homem fremente e quase hirto, ao mesmo tempo, à força de concentrar o ímpeto nas nádegas , arco donde a flecha partia, para se cravar, com uma violência próxima do desespero, nas entranhas ardentes e sombrias da rapariga. Parecia um cavalo ofegante - os olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco de Agosto. Mas a voz da terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu o leito do ribeiro e morreu no alto dos amieiros. Por fim a paz de Deus desceu ao mundo.
Maria olhava o carpinteiro com uns olhos rasos de espanto, como quem tivesse perdido tudo naquele instante. Lentamente passou-lhe a mão pelo cabelo, numa carícia tímida, e começou a chorar. O carpinteiro olhou-a também, mas os seus olhos eram diferentes, havia neles sombra e solidão. Eram uns olhos nocturnos, negros como poços fundos, afirmavam a morte.
Sem uma palavra, o homem ergueu-se e começou a mijar.
(...)
Era um silêncio no areal, nas árvores, nas nuvens. Um silêncio na tarde, na rua, nas casas. Um silêncio no pão, na água. Um silêncio que se tornava dia a dia mais pesado, mais devorador.
Um silêncio feito dos seios de Maria, dos flancos suados do carpinteiro, que me despertava a carne durante a noite, me fechava os olhos pela madrugada, me dava vontade de fugir durante o dia..."

Eugénio de Andrade, Fábula [in Correia, Natália (2008, 5.ª edição). Antologia Portuguesa de Poesia Erótica e Satírica. Lisboa: Antígona - Frenesi]

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